Prisão domiciliar a torturados: uma anistia velada
 

Publicado em quinta-feira, 25 de agosto de 2016 às 15:45

 
“As organizações de direitos humanos estão aqui para demostrar que temos memória”. A apresentação do evento começou com esta frase de Taty Almeida, da linha fundadora da organização Mães da Praça de Maio, que abriu a coletiva em que esta e outras agrupações realizaram na frente da sede da secretaria de Direitos Humanos, na ex-Escola de Mecânica da Marinha, para repudiar o que qualificaram como “um fato inaceitável”: o benefício da prisão domiciliar que o Tribunal Federal de La Plata outorgou ao genocida Miguel Etchecolatz, medida que ainda não foi aplicada.

Além das Mães, estavam presentes no encontro realizado nesta segunda-feira (22/8) representantes de organizações como as Avós da Praça de Maio (que segue linha diferente da das Mães), Familiares de Desaparecidos e Presos por Razões Políticas, da ONG Filhos (que reúne filhos de vítimas da ditadura), da APDH (Associação Permanente pelos Direitos Humanos) e da LADH (Liga Argentina pelos Direitos Humanos), além de advogados que participam em causas por crimes de lesa humanidade, que interpretam o outorgamento de prisão domiciliar ao ex-policial bonaerense – principal cúmplice de Ramón Camps, que foi chefe da repressão policial durante a última ditadura civil-militar – como uma espécie de “anistia velada” para esse e outros torturadores que também receberam o mesmo benefício recentemente. As organizações, diante dessa postura judicial de abrandamento das condenações, afirmaram que “teremos que voltar aos cantos dos Anos 90, para dizer que `onde não houver justiça, haverá escracho´”, segundo palavras de Taty Almeida.

“Num dia como o de hoje – recordou a Mãe, em referência ao aniversário número 44 da Massacre de Trelew, episódio no qual a Marinha fuzilou 16 militantes peronistas –, nós nos reunimos aqui para demonstrar que temos memória, essa que falta ao presidente (Mauricio Macri) e àqueles que o acompanham. De uma vez por todas, temos que entende que entender o que são os delitos de lesa humanidade, não anistiáveis. São delinquentes que não podem estar em suas casas”, explicou.

A presidenta da organização Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, qualificou a Etchecolatz como “personagem sinistro”, e disse que “a Justiça sabe quem ele é, o julgou e o condenou, mas parece que estes são tempos de considerá-lo um pobre velho que não merece o que lhe foi imposto antes”. Ela também criticou o secretário de Direitos Humanos, Claudio Avruj, por falar “com os familiares destes genocidas como se tivessem direito a alabar a semelhantes desumanizados”.






“Etchecolatz tem tantos crimes sobre seus ombros que é impossível pensar que algum dia estaremos vendo ele olhando pela janela dentro da sua”, disse Carlotto. A ativista assegurou que apelarão “ao sentido comum e à memória” do Estado e do Poder Judiciário, e propôs aos organismos presentes “pedir a (procuradora Alejandra) Gils Carbó que acione promotores para que intervenham fortemente no caso, e que vamos acompanhar o desenrolar disso de perto”.

Lita Boitano, da organização de Familiares, e Elsa Usandizaga, da APDH, concordaram com Almeida e Carlotto nas qualificações a Etchecolatz, e também com respeito à situação atual. “Quero pedir à Secretaria de Direitos Humanos que acompanhe as apelações” aos pedidos de domiciliária, agregou Boitano. Do contrário, segundo ela, “bloquearemos ruas, iremos ao Ministério da Justiça. Apesar de termos mais idade e mais dores físicas que em outros tempos, voltaremos nos mobilizar”. O público presente apoiou a ideia, aplaudindo e entoando o cântico símbolo da luta pela punição aos crimes da ditadura: “a donde vayan los iremos a buscar” (aonde forem nós iremos buscá-los). Usandizaga pediu ao secretário Avruj que “faça valer sua obrigação de defender os direitos humanos”. José Schulman, da LADH, advertiu que a domiciliária concedida a Etchecolatz forma parte de “uma campanha em favor da impunidade promovida pelo governo de Macri e por alguns juízes, através de seus operadores nos meios de comunicação”, e pediu aos organismos de direitos humanos “lutar por muito mais, pois precisamos ser persistentes nas causas contra os cúmplices civis, contra (Vicente) Massot, contra (Carlos Pedro) Blaquier e os que roubaram (a ex-estatal) Papel Prensa, para demostrar que este atual governo é o continuador e herdeiro das políticas da última ditadura, e que vamos enfrentá-los em todos os terrenos”.

Para Pablo Llonto, um dos advogados que representa familiares de vítimas e sobreviventes da última ditadura civil-militar e que também esteve presente na coletiva desta segunda-feira, o que acontece no caso dos benefícios domiciliários reflete “uma política de Estado de liberação de genocidas” diante da qual “será necessário lutar nos tribunais, mas também nas ruas”. Guadalupe Godoy, advogada denunciante em várias das causas nas que Miguel Etchecolatz foi condenado, e também nas que ainda está sendo investigado – como a da desaparição de Jorge Julio López, carpinteiro que foi a testemunha decisiva na condenação do ex-policial, seu caso é emblemático porque foi visto pela última vez no dia seguinte ao da sentença contra Etchecolatz –, advertiu que “as mudanças de critérios dos tribunais têm a ver com pressões políticas que evidenciam a atual estratégia dos repressores: se continuamos com os processos por justiça e reparação, que seja com eles observando tudo dentro de suas casas”.

Por sua parte, o secretário de Direitos Humanos Claudio Avruj alegou que o Estado não poderá apelar contra as decisões, pois a concessão dos benefícios seriam uma prerrogativa dos juízes. “Nós consideramos que devemos nos ater ao direito em igualdade de condições para todos diante da lei, e a lei marca que após os 70 anos de idade, o juiz tem a prerrogativa de conceder ou não o benefício domiciliar, em igualdade de condições para todos os presos. Além do mais, quem tomou a decisão foi o juiz (Ricardo) Gil Lavedra que integrou o tribunal que julgou as Juntas Militares”, afirmou o secretário, em entrevista à Rádio Continental.

Tradução: Victor Farinelli
 
Fonte - Carta Maior