O impeachment e o modelo econômico
 

Publicado em sexta-feira, 11 de dezembro de 2015 às 16:55

 
A maior parte dos analistas da conjuntura brasileira tem confluído para uma avaliação que se impõe a cada novo dia com mais força. Na verdade, trata-se do reconhecimento da existência de uma relação intrincada entre os elementos da política e da economia na determinação da natureza e dos rumos da crise que o País atravessa nos últimos tempos. Além disso, a tal quadro caótico vêm se somar outros aspectos do campo social, jurídico e até moral, contribuindo para a formação desse imbroglio mais recente, aparentemente sem saída fácil à vista.

O aprofundamento da gravidade dos indicadores da dinâmica da economia se manifesta a cada dia que passa, a cada semana que se inicia. A inflação confirma sua trajetória de alta e desde o início do segundo mandato de Dilma se mantém fora do limite superior da meta oficial. O intervalo aceitável entre 2,5% e 6,5% para o IPCA de 12 meses já foi superado em janeiro e agora ultrapassa os 10% para encerrar 2015.

A taxa de câmbio conheceu um importante movimento de desvalorização ao longo do ano. Saindo do patamar de R$ 2,60/dólar no início de janeiro, chegou a se aproximar de R$ 4,20/dólar em setembro e agora se estabiliza em torno de R$ 3,90/dólar. Ora, por mais necessário que fosse uma correção para o nível claramente artificial do câmbio sobrevalorizado do período anterior, o fato é que uma desvalorização de 50% ao longo de poucos meses provoca impactos expressivos sobre o conjunto dos preços relativos.

O custo social do austericídio.

Não custa recordar que a estratégia para a política econômica aceita por Dilma foi a velha receita surrada apresentada pelo financismo. Com a indicação de Joaquim Levy para o comando do Ministério da Fazenda, a orientação resumiu-se aos cortes de gastos públicos para viabilizar o sacrossanto superávit primário. O mantra do ajuste fiscal espalhou-se pela Esplanada com o aval do Palácio do Planalto e os programas sociais todos passaram a sofrer as consequências da redução de suas respectivas rubricas orçamentárias.

Na ponta da política monetária, o Comitê de Política Monetária (COPOM) se manteve em sua determinação firme de contribuir para agravar ainda mais a tragédia que se anunciava desde o final do ano passado. O colegiado manteve a trajetória altista da SELIC, levando a taxa referencial de juros de 11,75% ao ano para os atuais 14,25%. Como havia um diagnóstico equivocado a respeito da natureza da inflação, todo esse movimento de explosão dos custos financeiros não contribuiu em nada para a redução dos índices de crescimento dos preços. Pelo contrário, terminou por agravá-lo ainda mais.

As novidades oferecidas pela Operação Lava Jato e o clima de tensão crescente nas relações entre o Executivo e o Legislativo contribuem para a retroalimentação das crises política e econômica. A decretação de prisão de responsáveis por grandes empresas e de agentes políticos de expressão na cena nacional agrava o quadro de incertezas e não oferece nenhum estímulo para a retomada da atividade econômica, em especial a tão necessária recuperação dos investimentos.

O único setor que tem se beneficiado da política do austericídio é o mundo das finanças. Os bancos têm apresentado de forma insistente resultados de lucros bilionários em seus balanços, enquanto a crise do setor real da economia se manifesta por meio de falências, demissão de assalariados, queda nas vendas e prejuízos operacionais. Até mesmo na contabilidade pública a força do financismo se faz presente, determinando os rumos da política econômica por dentro da máquina do Estado. As instituições financeiras se locupletam com os juros estratosféricos e com os mais de R$ 500 bilhões a elas transferidos pela União a título de juros da dívida pública. Mas a lógica obtusa do fiscalismo ortodoxo se contenta apenas com a promoção de cortes na saúde, na educação, na previdência e outras rubricas sociais.

Concessão para seu algoz.

Já faz um bom tempo que as dificuldades de articulação de sua base de sustentação e a teimosia oficial em manter a política econômica da ortodoxia conservadora têm provocado uma espécie de paralisia no governo. A impressão que se tem é que ele parece estar sempre aguardando pelo dia seguinte para sugerir uma iniciativa que rompa com o seu próprio isolamento. Ao acenar suplicante para as forças do conservadorismo e aplicar a política econômica que a elas mais convém, Dilma cultiva a ilusão de obter o apoio político dos que trabalharam abertamente em prol do candidato derrotado em outubro do ano passado.

A despeito de haver realizado concessão atrás de concessão em favor do grande capital, o governo só tem colhido a continuidade da oposição e do boicote sistemáticos por parte daqueles a que busca beneficiar. Os custos dessa política equivocada são enormes e devem ser ainda maiores à medida que as consequências sociais comecem a se manifestar de forma mais drástica. A perda de poder de compra dos salários e o aumento do desemprego aumentam a temperatura da panela de pressão.

A entrada do “impeachment” como principal item da agenda política do País torna o quadro ainda mais confuso. Seria irônico, não fosse trágico, que o principal protagonista desse movimento, que beira a “quartelada sem militares”, seja o próprio presidente da Câmara dos Deputados. O mesmo Eduardo Cunha, que está afundado até o pescoço em denúncias de corrupção e que sofre processo pela cassação de seu mandato. A estratégia golpista das forças que nunca se conformaram com o resultado das urnas é bastante clara. Agora tentam se aproveitar do sentimento de vingança do deputado carioca e da baixa popularidade de Dilma para forçar a sua saída de forma inconstitucional.

O gesto farsesco mais recente de Michel Temer e as sucessivas traições na base de seu partido devem ter sido suficientes para evidenciar o erro estratégico de continuar insistindo em uma aliança preferencial com agremiações partidárias que são especialmente conhecidas por seu oportunismo e fisiologismo. Em busca de uma suposta governabilidade a qualquer preço, o governo só tem colhido desgaste político e aumento de sua fragilidade institucional.

Mudar a política econômica para obter apoio popular.

A única via segura para dar a volta por cima dessa sinuca de bico passa pela recuperação do apoio popular para seu mandato. Dilma precisa reconhecer de forma sincera os equívocos cometidos até agora e apontar claramente para medidas de ruptura com o ajuste fiscal conservador. Isso significa retomar a essência do programa de governo colocado em debate há mais de um ano atrás. Naquele momento, a candidata em busca de reeleição, se dizia comprometida com a via do desenvolvimento econômico de natureza inclusiva e com a continuidade da marca dos governos que vinham, desde a mudança de 2003, promovendo a redução das desigualdades sociais e econômicas no Brasil.

O chamamento a derrotar essa tentativa de golpe travestido de impedimento deve se combinar a uma reorientação do rumo do modelo econômico patrocinado pelo liberalismo financista. E aqui se fundem - mas de forma virtuosa dessa vez - a política e a economia. O reconhecimento popular da legitimidade da mandatária da Presidência da República viria pela sua capacidade em assimilar as críticas dos movimentos sociais e se juntar aos que propõem a via do Brasil justo e democrático.

Esse é o momento de apresentar uma política econômica voltada à defesa dos interesses da maioria. Um projeto onde os setores privilegiados das elites, que sempre foram beneficiados pelas políticas públicas, também sejam obrigados a oferecer sua cota de sacrifício para a superação da crise. Enfim, uma ruptura com o austericídio e a implementação de uma política ativa contra a recessão e o desemprego.

*Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
 
Fonte - Carta Maior