O significado político-jurídico da agressão sofrida por Stédile
 

Publicado em segunda-feira, 28 de setembro de 2015 às 16:42

 
O atentado sofrido por João Pedro Stédile no aeroporto de Fortaleza, neste 22 de setembro, revela pelo menos três coisas.

A primeira é ideológico-cultural. Qualquer movimento popular de defesa de direitos humanos fundamentais de gente pobre, como é o MST, do qual ele é a principal liderança, não está mais sendo agredido apenas de forma disfarçada por aquela fração do poder econômico brasileiro hostil também a toda gente pobre, à dignidade humana, à cidadania e ao Estado Democrático de Direito.

Essa faz parte de um histórico preconceito cultural, de inspiração colonialista e escravocrata, enraizado numa convicção autossuficiente de superioridade, sensível ao ponto de reagir violentamente contra qualquer expressão contrária ao seu modo de pensar, agir e manifestar-se.

A segunda é ético-sociológica. Na precipitação, no açodamento de pessoas pertencentes à classe do Paulo Angelim, militante do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e empresário do ramo imobiliário que liderou a agressão – conforme se lê na carta de solidariedade a João Pedro circulando na internet – estão aproveitando o ambiente rasteira e hipocritamente moralista, atualmente atordoando o país. Insuflado por versões absolutamente parciais da mídia contra movimentos populares do tipo liderado por João Pedro, ele transfere aquela hostilidade disfarçada para uma violência física, no sentido de mostrar que “só a pau” esses movimentos e suas lideranças “tratem de conhecer o seu próprio lugar”...

O recurso à violência física contra alguém de quem se discorda ou se odeia, como se sabe, além de imoral, quase sempre revela um desespero demonstrativo de falência da razão. Por isso, ele não hesita em trocar o diálogo civilizado pela força bruta, já que, mesmo remotamente, no pouco grau de consciência que a paixão permite, não sabe mesmo como sustentar sua não razão.

A terceira, talvez a mais preocupante, é predominantemente jurídica. Constitui-se no regresso da ideia de que este tipo de violência é o único capaz de salvar o país da crise pela qual ele passa agora, acentuada de forma temerosa por parte da classe a qual pertence o agressor. Nem é necessário um esforço de memória meramente comparativa para se deduzir desse vergonhoso episódio, a saudade dos seus/suas promotores/as pelo que eles/as chamam de “garantia de segurança”, “disciplina e ordem”, “liberdade”, “respeito à propriedade” bem entendidas aquelas que são de exclusivo interesse dessa fração de gente.

Também não é necessário identificar-se aí a pregação do desrespeito às opiniões e organizações populares alheias, sobre as vantagens inerentes a violência do nosso passado ditatorial, como algumas faixas de manifestações públicas massivas estão fazendo, saudosas do golpe militar de 1964.

Essa espécie de doutrina defende ardentemente “o respeito devido à lei”, desde que essa, evidentemente, não ameace os conhecidos abusos e excessos derivados de “direitos”, mesmo aqueles cuja aquisição tenha sido feita na base do roubo e da corrupção contra outros direitos, como os sociais, já que roubo e corrupção são práticas criminosas sempre “dos outros”.

Em casos tais, o problema é da Constituição, da lei. Nem a primeira, nem a segunda, se atrevam a colocar em causa “direitos” dessa ordem. A ditadura, por exemplo, não teve nem nunca terá nada de imparcial, mas ela, justamente por conhecer o seu lado, nunca o deixa descoberto. Se o regime democrático atual é garantido legalmente pela nossa Constituição, pior para ela e para o povo de cujos direitos ela se pretende garante.

Não é a primeira vez, e certamente não será a última, que João Pedro vai sofrer agressões desse tipo. No intuito de envergonhá-lo, ela só aumenta a sua honra, o mérito do seu testemunho de vida e dedicação ao povo brasileiro, especialmente às/aos sem terra, ao mesmo tempo em que cobre de vergonha, má fama e estultice os seus agressores.

Qual a liderança popular capaz de questionar as/os poderosas/os de suas épocas, no passado, não sofreu as mesmas humilhações? O cinismo inspirador do agora sofrido por João Pedro é igual aquele que, passadas as vitórias sociais alcançadas por pessoas como ele, em favor de gente oprimida contra gente opressora como a que o agrediu, vai ser objeto de rasgados elogios no futuro exatamente pela mesma classe opressora do passado. Até as lendas, como a do Negrinho do Pastoreio aqui no Rio Grande do Sul, confirmam isso.

O escandaloso atraso que o governo do país vem mostrando, há décadas, na implementação da política pública de reforma agrária, tem sido enfrentado pelo MST, sua principal liderança e todos aqueles movimentos populares e as muitas entidades e pessoas que estão assinando a carta de solidariedade a ela enviada, atualmente circulando na internet.

Talvez sejam poucos os imóveis desapropriados no Brasil para fins de reforma agrária – sabidamente insuficientes para a demanda das/os agricultoras/es sem terra – que não tenham sido precedidos de forte pressão delas/es organizadas/os em movimentos como o MST, Via Campesina, pastorais como a CPT, inclusive no que se refere a identificação das áreas passíveis de serem desapropriadas.

É claro que isso incomoda bastante estamentos sociais constituídos por quem vê na realidade injusta e opressora, própria da distribuição dos imóveis rurais no nosso país, nenhuma desigualdade censurável, nenhuma inconstitucionalidade, nenhuma ilegalidade, nenhuma agressão ao meio ambiente, já que o direito adquirido de propriedade sobre terra, por mais abusivo e antissocial que seja, tem de prevalecer até contra a vida de todas aquelas pessoas que esse modo de exercício e gozo de um “direito” pretende perenizar.

Pelo seu passado, pelo testemunho diário que dá em defesa das/os sem terra, pelos muitos prêmios e homenagens que tem recebido no Brasil e no exterior, João Pedro não precisaria da significativa solidariedade que está recebendo, mas ela ratifica o reconhecimento de uma vida toda posta a serviço das/os mais pobres, não simplesmente limitada a um paternalismo assistencialista, mas política e convenientemente mobilizada contra um alvo certamente inquestionável: a absurda injustiça social inerente ao sistema socioeconômico do país, copiada nesse lamentável incidente por quem o agrediu.

Mesmo assim, uma lição pode ser tirada disso: essa violência é muito covarde e o seu enfrentamento é muito corajoso.
 
Fonte - Carta Maior