A volta das marchadeiras
 

Publicado em terça-feira, 4 de agosto de 2015 às 17:01

 
Luiz Alberto Gómez de Sousa

Há momentos em que a gravidade da conjuntura se impõe inapelável. A Grécia está vivendo essa realidade de maneira dramática. Mas no Brasil também estamos diante de um cenário de urgências. Há uma mobilização dos grupos conservadores para desestabilizar o governo. Uma data: 16 de agosto, com o chamado para manifestações no país inteiro. Já vivemos essa situação, em março de 1964, com as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Aliás, em março de 2014, uma pequena marcha celebrou em São Paulo os 50 anos daquelas de 1964, que prepararam o golpe.

Essa movimentação vem sendo orquestrada por uma ação sistemática do PIG (Partido da Imprensa Golpista), como chama Paulo Henrique Amorim. Trata-se de um trabalho cuidadoso e permanente de desprestígio do governo e de desestabilização, através de notícias parciais ou deturpadas, colunas de opinião, solenes editoriais ou imagens com impacto subliminar. Exemplo eloquente: O Globo, festejando em 29 de julho seus 90 anos a serviço das elites dominantes, abre sua primeira página com um retrato profundamente desrespeitoso e insultante da primeira autoridade da nação, legitimamente eleita. Posição digna de um daqueles tabloides ingleses escandalosos e irresponsáveis. A queda da avaliação do governo nas pesquisas vem sendo cuidadosamente preparada por essa imprensa, Veja, Organizações Globo, Folha de São Paulo, Estadão, etc..

Vejamos o caso das Organizações Globo. Nos anos cinquenta, quando cheguei ao Rio, o jornal O Globo, vespertino, não se equiparava ao Correio da Manhã, ao Jornal do Brasil e inclusive ao Diário de Notícias. Vendia em boa parte pelas tiras das aventuras de Ferdinando, de Reizinho ou de Mandrake. Substituirá mais adiante os Diários Associados, um grande império em decadência. Para isso contribuiu sua ligação estreita com os governos militares e, pela batuta de Walter Clark, por sua associação com o grupo americano Time-Life. Atravessou assim incólume o período da ditadura militar, cresceu e usufruiu de suas benesses. Tanto que, na redemocratização, custou a situar-se na nova realidade. Por ocasião da grande campanha das Diretas Já, começou ignorando-a e só passou a noticiá-la depois da manifestação gigantesca de São Paulo, em 25 de janeiro de 1984, mesmo assim de maneira truncada, como se fosse apenas um evento do aniversário da cidade. Em 22 de abril deste ano de 2015, William Bonner reconheceu o fato “como um erro”!

Veio mais adiante o episódio da Proconsult, empresa apuradora eleitoral escolhida pelos militares e pelo SNI, na eleição de 1992 para governador do Rio de Janeiro, a fim de falsificar os resultados e dar a vitória a Moreira Franco, derrotando Leonel Brizola, insuportável para a caserna. Essa operação contou com o apoio das Organizações Globo, que iam noticiando durante a apuração a derrota de Brizola. Denunciada a tentativa de fraude, este foi eleito e, dois anos depois, teve direito de resposta no Jornal Nacional da TV Globo de 15 de março de 1994, quando denunciou a “longa e cordial convivência (da emissora) com os regimes militares” ( Ver Paulo Henrique Amorim e Maria Helena Passos, “Plim-plim e peleja de Brizola contra a fraude eleitoral”).

Antes, nas eleições presidenciais de 1989, as Organizações apostaram no mistificante caçador de marajás, de família de coronéis nordestinos, enfrentando um simples operário. O Jornal Nacional da TV Globo editou matreiramente o debate Lula-Collor. Os oito anos de FHC foram tempos de bonança para a família Marinho, mas logo, em 2002, a candidatura de Lula pela quarta vez, acendia o sinal vermelho. Mas o PIG não conseguiu evitar a eleição de um torneiro mecânico, intragável para as elites. Como lembrou Luís Fernando Veríssimo, depois de governos dos Bragança, chegou ao poder um simples da Silva.

Porém logo, mais adiante, pela ameaça da reeleição de Lula, o PIG fez um grande estardalhaço com as revelações do que foi chamado o escândalo do mensalão. É verdade que contou com a colaboração irresponsável e criminosa de setores incrustados no governo, que cederam às tentações do poder. Dirigentes do próprio PT, com a mentalidade aparelhista herdada de uma esquerda autoritária, querendo perpetuar-se a qualquer custo, deram dobradas razões para as denúncias. Foi o tempo dos aloprados.

Aqui valem duas observações. Essas práticas de corrupção vinham de mais atrás, é só pensar no mensalão mineiro, ou tucanoduto, durante a reeleição de Eduardo Azeredo do PSDB, em 1998, onde já aparecia o aventureiro Marcos Valério. Vieram também os escândalos dos contratos no metrô e nos trens metropolitanos de São Paulo, com propinas da empresa Alstom, em várias gestões do mesmo PSDB, também desde 1998, já com a presença de Alberto Youssef e, num primeiro momento, durante a gestão na secretaria de energia do genro de FHC. Mas se quisermos ir ainda mais longe, descobrimos as grandes negociatas durante o governo Médici, na construção da ponte Rio-Niterói e em outras obras daqueles anos. A corrupção veio assim endêmica, lá de trás até os dias de hoje.

A segunda observação é que, de 2003 em diante, houve total liberdade, com o Ministério da Justiça dando luz verde para as apurações do ministério público, da polícia federal e do Procurador Geral da República, que encaminhou denúncias de parlamentares ao STF, iniciando-se ali, em 2007, um longo e publicitado processo. Dirigentes de partidos governamentais, do próprio PT, foram denunciados e presos, o que não se vira no passado. E Lula, nesse conturbado período se reelegeu e, mais adiante, elegeu sua sucessora. Os setores dominantes e sua imprensa a soldo, nunca perdoaram a maioria da população que votou num operário e logo depois numa ex-guerrilheira.

Não foi possível ocultar os enormes avanços na área social, com o Fome Zero e logo depois o Bolsa Família, Luz para todos, Pronatec, Pro-uni, Mais Médicos, etc., e com a saída de quarenta milhões de brasileiros da linha da pobreza.

Mas então, com sua enorme audiência, as Organizações Globo criaram um clima permanente de desgaste, que chegou a seu clímax nas últimas eleições presidenciais, quando estavam certas da vitória de Aécio Neves. Foi patético ver a pandilha do Jornal das Dez sair do ar, quando se anunciou a vitória de Dilma. Precisou de uns minutos para se recompor. Mas desde então, tem continuado uma campanha implacável, acolitada por declarações virulentas de um perdedor que não esconde até hoje sua dor de cotovelo.

O pior é que a opinião pública, cuidadosamente trabalhada, em parte foi assimilando a imagem de um governo corrupto e à deriva. O que não se diz é que, graças a esse governo, as bandalheiras de ontem e de hoje vão saindo à luz do dia. E na política do quanto pior melhor fere-se o país, economistas e jornalistas cooptados tentando desfazer a construção lenta e laboriosa da nação, num entreguismo deslavado.

Tem sido emblemática a campanha contra a Petrobras. É certo que uma gangue, desde muitos anos, antes mesmo de 2003, se homiziou na empresa. Seus membros estão sendo denunciados e presos. Mas a Petrobras, nacionalizada ao nascer no governo Vargas e privatizada em parte no tempo do tucanato, segue adiante e cresce. É só ver os números positivos de seus balanços, apesar do enorme rombo de bilhões de dólares das propinas e superfaturamentos, que retornarão em parte depois das delações premiadas. Ela se mantém como uma das exitosas empresas a nível mundial. Os investimentos da Petrobras, entre 1992 e 2002, não chegavam a 5 bilhões de reais por ano. O governo Lula alavancou-os para 10 bilhões/ano, em 2005. Com o Plano de Negócios atual, chega a 45 bilhões por ano, multiplicando por dez os investimentos anteriores a 2003. Os lucros, em 2013, foram da ordem de 23,6 bilhões e serão de 29 bilhões este ano. A Petrobras iniciou o primeiro trimestre deste ano já com um lucro líquido de 5,33 bilhões, informou o presidente da empresa. E poderíamos seguir dando cifras astronômicas. O contrário de uma empresa em quebra, como noticiam os que gostariam de privatizá-la por inteiro.

Vem agora a posição entreguista diante da descoberta do pré-sal, querendo mudar o regime de partilha, aprovado em 2010, pelo qual o Estado é dono do petróleo produzido, com a proposta do senador José Serra para voltar ao regime de concessão, afastando a Petrobras do centro da produção. Note-se que o pré-sal, no regime de partilha, em fevereiro deste ano, alcançou a produção de 737 mil barris em um dia. Repito: houve-se dizer que nunca ocorreu tanta corrupção como agora. É confundir a visibilidade das denúncias hoje, com a realidade da empresa, em crescimento apesar de vir sendo assaltada desde muitos anos por agentes criminosos. Mas agora, essa é a novidade, o abscesso está sendo lancetado.

Que falta faz um diário como a Última Hora dos anos 50, o mais moderno de seu tempo, com uma invejável equipe de jornalistas e de colaboradores, comparado com a raquítica e furibunda Tribuna da Imprensa. Como levar à opinião pública toda uma realidade ocultada pelo PIG? Temos meios de comunicação alternativos da melhor qualidade, mas o risco é circularem principalmente nas áreas progressistas politizadas e não terem a imprescindível visibilidade no grande público. Claro, elas e as redes sociais, assim como textos postados no Facebook, apresentam outra realidade. Mas é difícil concorrer com a enorme audiência do Jornal Nacional da Globo, inserido matreiramente entre duas novelas.

Em 1950, a vitória de Getúlio foi irretorquível, com 48,73% dos votos, o que não impediu ao corvo do Lavradio de clamar antes da eleição: “O senhor Getúlio Vargas senador não deve ser candidato à eleição presidencial. Candidato não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar” (T da I, 1/6/1950). O dramático suicídio de Vargas em 1954, adiou por dez anos o golpe, sempre latente. Este fracassou em 1961, com a cruzada da legalidade de Brizola lá no meu Rio Grande. Mas afinal chegou em 1964. Entretanto não se tratou de uma quartelada clássica, porém contou com forte apoio civil. Daniel Aarão Reis fala de um golpe civil-militar (“Ditadura e democracia no Brasil”). Quantos, na última eleição, não pensaram igual a Lacerda, sem se atreverem a explicitar essa sequência doentia. Mas ao menos se fixaram no último degrau: impedir a presidenta de governar. Depois de vinte anos de arbítrio, recomeçou tímida a redemocratização. Mas as mesmas forças golpistas se mantiveram latentes. Pareciam querer voltar, quando ensaiaram um pseudo terceiro turno, ilegal sob todos os aspectos ou pensaram num impeachment da presidenta, sem provas. E alardeiam, com visível satisfação e falta de patriotismo, dados de uma forte crise econômica comum a tantos países.

A Operação Lava-Jato trouxe elementos positivos. Denuncia e está condenando gatunos enquistados na administração pública e, pela primeira vez, corruptores das empreiteiras vão para a cadeia. Mas falta ainda um terceiro grupo, mais decisivo e na base de tudo, os políticos, deputados e senadores que estão no centro vital da corrupção. Dentro de uns dias eles aparecerão nas denúncias do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot e o STF terá que se pronunciar, como o fez no tempo do chamado mensalão. Sente-se um intenso nervosismo em setores do meio político. A começar pelo presidente da Câmara, que inevitavelmente será expelido do poder, por formar, com deputados do chamado baixo-clero, paus-mandados do truculento presidente, o que vem sendo chamada de uma verdadeira gangue. Ameaçam e intimidam, como uma máfia. Será necessária uma ampla profilaxia democrática no Parlamento, incluindo a presidência do Senado.

Onde estão as esquerdas progressistas e os nacionalistas, para se mobilizarem diante das ameaças golpistas e das marchas desestabilizadoras? Vemos alguns de seus membros limitando-se a fortes críticas às políticas econômicas do governo que, mesmo se em boa parte são críticas razoáveis, não desocultam nem identificam o perigo imediato mais importante. Não posso esquecer a posição das esquerdas radicais em dezembro de 1962, torpedeando o Plano Trienal de um grande patriota, Celso Furtado, que tentava dar fôlego à economia, denunciando-o como reformista e anulando também os esforços de San Tiago Dantas, que se sobrepunha a uma terrível enfermidade terminal. Enquanto isso, a preparação do golpe corria célere.

Um exemplo nos vem da Grécia, num valente texto de Yanis Varoufakis: “Por que votei primeiro não e depois sim” (Sin permiso, Barcelona, julho de 2015). Ele votou não às medidas que Alexis Tsipras terminou aceitando, baixo terrível pressão. Mas deixou claro: “Quando te encontras em semelhante encruzilhada, baixo a pressão de uma aliança nada santa de potências internacionais, é aceitável que uns companheiros elejam uma opção e outros a contrária. Nessas circunstâncias, seria criminoso que uns chamassem os outros de ‘vendidos’ e os outros aos primeiros de ‘irresponsáveis’. Agora, em meio a estas disputas de fundo, a unidade de SYRIZA e daqueles que acreditaram em nós e nos deram o 61,5% no referendo, essa unidade é a prioridade”. E indica com franqueza: ”Nem sou o mais revolucionário/ético, nem eles os mais responsáveis. Hoje seremos julgados por nossa capacidade de proteger com todas as forças nossa unidade, o companheirismo e o coletivo, mantendo nosso direito de divergir... Meu objetivo principal é proteger a unidade de SYRiZA e apoiar A. Tsipras e E. Takalotos (seu sucessor no ministério de finanças)”. E numa nova votação, deu um sim, “com a esperança que meus companheiros ganhem um pouco de tempo e que todos nós, unidos, planifiquemos uma nova resistência à autocracia, à misantropia e à aceleração e aprofundamento da crise”. Hora de cerrar fileiras na unidade, diante de um inimigo inabalável e prepotente.

No caso do Brasil, haverá uma vontade real de setores de esquerda ou nacionalistas, para constituir uma forte unidade diante de marchas golpistas e para apoiar o Governo legitimamente eleito? Às vezes tenho a impressão de que não há real consciência dos perigos imediatos da conjuntura, em setores que ficam em análises globais, sem fazer o que Marx indicou: subir do abstrato das ideias gerais, ao concreto da realidade contraditória. O próprio governo aparece sem iniciativas fortes, e uma vez mais penso, com receio, nas indecisões dos tempos de Jango.

Duas histórias para terminar. Um professor da FLACSO, no Chile, nos relatava a seguinte situação. Com um grupo de estudiosos, estavam debruçados em dois livros de Althusser que acabavam de sair, “Pour Marx” e “Lire le capital” e que pareciam arejar um marxismo esclerosado (ledo engano se veria depois). Era maio de 1968 e Paris foi ficando tensa e conflitiva, dificultando um sisudo e sério trabalho intelectual. Resolveram interromper o grupo de estudos, até que a situação voltasse à tranquilidade e então se dispersaram. Nosso professor partiu para Barcelona. Lá se deu conta de que o que ocorria era muito mais profundo do que ele percebera, enredado em análises teóricas. Quis voltar a Paris, mas uma greve geral dos transportes o impediu. Com isso perdeu a riqueza da prática do Maio 68.

Outro exemplo vem de um livro de Stendhal, “A cartuxa de Parma”. Fabrice del Dongo era um jovem bonapartista entusiasta que queria a todo custo participar na volta de seu ídolo do exílio na ilha de Elba. Descobriu que ele estava na Bélgica e para lá se encaminhou. Acostumado a ler narrativas de batalhas nos livros, sem nunca ter participado em nenhuma, chegou onde estavam os conflitantes exércitos europeus e se encontrou diante do que para ele parecia um grande tumulto e uma confusão incompreensível. Resolveu ir dormir, na esperança de que no dia seguinte as coisas estivessem mais claras, para então integrar-se nas hostes napoleônicas. Ao acordar, descobriu que estava em Waterloo, pequena cidade perto de Bruxelas, em plena batalha e que Napoleão tinha acabado de ser derrotado, partindo para seu exílio definitivo em Santa Helena.

Assim são muitas vezes companheiros entupidos de teorias, sem o discernimento dos fatos reais ou sem o sentido de unidade e disciplina de Varoufakis diante do verdadeiro adversário. Saberemos cerrar fileiras na defesa da democracia e da legitimidade do governo de Dilma Rousseff, frente aos setores golpistas? Há que trazer fatos e, como ensina Habermas, pedagogicamente argumentar com uma opinião pública confundida por uma bateria de informações deturpadas e parciais. Frente às marchadeiras e aos marchadores que estão preparando suas manifestações, saberemos, com realismo e sem medo, dar uma resposta de unidade e de mobilização, forte, lúcida e contagiante?

Quixote pensava estar diante de “desaforados gigantes”, para uma “fiera y desigual batalla”, mas na verdade, naquele momento como agora, não passavam nem passam de simples moinhos barulhentos, hoje embalados pelos ventos enganadores dos setores dominantes. E, como os companheiros espanhóis, teríamos de dizer com força e convicção: sim, podemos.
 
Fonte - Carta Maior