O futuro não promete nada. Agora é que conta
 

Publicado em quarta-feira, 11 de março de 2015 às 16:09

 
O início do século tem sido um nevoeiro denso.

Na Europa, uma longa depressão tem vindo a corroer o emprego e é usada para abater as políticas públicas contra a pobreza, banalizando-se a regra da transferência de uma renda financeira entre o trabalho e o capital, medida em dívida pública e em privatizações vorazes. Triunfantes, os raptores da Europa negociam com a Casa Branca um Tratado para o livre comércio transatlântico, garantindo o primado de investimentos predadores e o benefício da finança.

Na América Latina, os governos que em algum momento se afastaram do consenso de Washington são atingidos por crises internas (no Brasil, o escândalo Petrobrás fotografa o regime), ou por ataques ferozes (Argentina e Venezuela), ou retornaram a políticas conservadoras. Sentirão agora como faltou consolidar uma cooperação política que fizesse do continente um protagonista mundial. Para tanto faltou-lhes sobretudo uma aliança social que impusesse a reforma agrária contra o agronegócio, a distribuição de renda contra o plutocracia e a democracia contra a cleptocracia, e isso não é o menor dos problemas, pois vão perdendo na disputa popular.

Na Ásia, a China torna-se o único poder, de entre os países emergentes, que joga no mundo. Um milhão e meio de trabalhadores monta os gadgets electrônicos que inundam os mercados ocidentais, muitos mais laboram os outros produtos da fábrica do mundo. Esta acumulação de capital reforça uma burguesia de nomenclatura e poder absoluto.

No Oriente Médio, a ocupação da Palestina eterniza-se e, com o fracasso das primaveras árabes, as forças laicas e democráticas são encurraladas pela ascensão dos movimentos de tipo proto-fascista.

Nos vários casos, as esquerdas não criaram alternativas e, por isso, descobrem-se agora num beco angustiante. Os seus adversários, como a social-democracia europeia, hoje assimilada pelos financistas, tiveram a sua prova provada na Grécia: fracassada no governo que levou o país a um desastre econômico, acabou eleitoralmente esmagada, com a particularidade pouco notada de o presidente da Internacional Socialista, Andreas Papandreu, nem ter sido eleito deputado. Os partidos de centro, noutros continentes, adaptaram-se à estratégia de recrutamento de bases eleitorais com políticas caritativas, enquanto utilizam as redes de empresas e favores: a política depende da finança tanto quanto as carreiras dos governantes que dela beneficiam.

A uniformização das políticas entre partidos governistas conduziu, por isso, a crises de regimes. Não podia ser de outra forma. No Brasil, o núcleo do sistema partidário é incapaz de gerar alternativas e é um moinho de corrupção: Dilma está sob fogo da sua própria coligação e não só do revanchismo das direitas. Na Grécia, os partidos tradicionais desaparecem e surgiu assim a brecha na muralha, o primeiro governo com políticas de esquerda na Europa dos últimos trinta anos, um furacão de alternativas. Na Itália, os partidos tradicionais feneceram ou são perturbados por um movimento populista. Mas também na Grã-Bretanha, Alemanha e França os regimes instalados desde o pós-guerra são abalados pela desconfiança popular contra a simetria política do rotativismo. Na Espanha, o movimento social gerou um partido político, o Podemos, e isso já foi suficiente para abalar o bipartidismo reinante desde o fim do franquismo.

Mas então porque não surgiu ou se reforçou esta esquerda transformadora em outros países ou no plano internacional?

Uma resposta é que as esquerdas sociais e políticas, atravessando vários espaços partidários, terão hoje menos capacidade de criar esperança do que há uma dúzia de anos. Não me digam que é por falta do Muro e da arrumação da Guerra Fria, porque essa era uma pedra amarrada ao pescoço de quantos procuram uma democracia responsável e uma política socialista credível. Mas é por falta de movimento internacional que aquela energia popular que despertou na luta contra a guerra do Iraque se cansou do seu trabalho de Sísifo. A globalização de um movimento alter-financiarização está congelada na sua incapacidade.

Não era fácil. Sem ser capaz de conduzir revoluções sociais que tivessem o efeito moral que Cuba representou nos anos sessenta, a esquerda jogou curto e esperou uma guerra de trincheiras, quando o inimigo se movia tão rápido que atacava de míssil e de drones. Estava escrito, a esquerda perdeu até agora em quase todos os tabuleiros: no desemprego, na regressão social, no corrompimento dos grandes partidos. O agigantamento do capital financeiro como superpotência mundial torna ainda mais limitado o poder de decisão dos enfrentamentos nacionais, mas, como se nota na Espanha e na Grécia, é sempre por aí que começa o começo. A Grécia é por isso o ponto de partida para uma nova Europa, reencontrando-se simbolicamente com a origem histórica da democracia.

Ora, para sustentar a Grécia, como para retomar as forças transformadoras ou o ímpeto revolucionário das esquerdas, é precisa uma estratégia e uma ponte.

Uma estratégia, porque não podemos continuar a perder na luta pelo senso comum. Acreditar na evidência das nossas propostas deixou de ser uma opção: elas não são evidentes e, em geral, nem são bem pensadas e fundamentadas. Um slogan não basta para fazer uma política. Um grito não é nunca uma vitória. Na Europa, desmantelar o euro e o regime de liberdade de circulação de capitais exige estratégias rupturistas bem preparadas, porque haverá uma transição difícil. Na América Latina, voltar a dar sentido à luta popular que quer ser maioritária, e que foi consumida pelo aparelhismo e por um situacionismo manso, exige estratégias de composição limpando a política das manchas odiosas que a conspurcam.

Uma estratégia e uma ponte, porque um novo ímpeto de movimentos como o Fórum Social Mundial é a condição para responder à superpotência finança. É disso que precisamos agora, da Grécia à Argentina.

Uma vez começou no Brasil. Se agora recomeçar outra vez, mais vale evitar o tempo perdido. Como na canção de Gonzaguinha, “Vida, vamo nós/E não estamos sós/Veja meu bem/A orquestra nos espera”, espera agora, sem esperar pelo futuro. O futuro fica muito longe, demasiado longe, o futuro é mentiroso, promete o que logo esquece. O presente é que conta.


Francisco Louçã, professor catedrático de economia na Universidade de Lisboa
 
Fonte - Carta Maior